No última segunda-feira (10), uma cena de estupro coletivo foi
exibida na novela “Em Família”, gerando uma onda de comentários
aturdidos diante do terror que, para muitos, chegou sem aviso. Manoel
Carlos, autor da nova novela, parece ter uma predileção por abordar a
violência contra a mulher em seus enredos. No entanto, apesar de suas
alegadas boas intenções, a mais recente personagem a experimentar a
realidade da misoginia não causa otimismo a quem já debate questões como
estupro e aborto.
A desconfiança que parte das ativistas feministas e de outros aliados
na luta contra o machismo acontece porque, ao contrário do que Manoel
Carlos defende, o caso de estupro não terá um desfecho socialmente
responsável. Acontece que a mulher estuprada, Neidinha, engravidará do
estupro, manterá o feto e, anos depois, precisará lidar com sua filha em
busca do “pai”. Embora seja garantia da lei brasileira, mulheres que
engravidaram devido a estupro encontram uma dificuldade enorme na hora
de conseguir efetivar o aborto com segurança e auxílio do SUS. Há
incontáveis casos em que mulheres negras e pobres são obrigadas a dar
continuidade à gestação, sendo intimidadas e pressionadas por equipes de
saúde e religiosos de sua comunidade.
Neidinha também é mulher negra, mais uma que é retratada de forma
negativa, dentro de um contexto revoltante – e o seu estupro tem alguns
pontos pelos quais devemos, no mínimo, refletir com seriedade. Um deles é
a classificação indicativa da novela, pois “Em Família” foi
categorizada como não recomendada para menores de 12 anos, limite que
indica insinuações de sexo e alguns tipos de violência. No entanto,
quando o assunto é estupro, a classificação sobe para 16 anos.
O estupro não é qualquer violência. Não é a toa que tantos filmes são
amplamente reconhecidos como “muito pesados” por mostrarem cenas
detalhadas de estupro. O que Neidinha sofreu na Globo foi
verdadeiramente perturbador – os gritos podiam ser ouvidos de longe e
suas expressões faciais causaram extremo mal estar em milhares de
pessoas ao redor do país. Ainda mais triste são os diversos relatos de
mulheres vítimas de estupro, que foram pegas de surpresa pelo capítulo e
tiveram que lidar com uma carga pesada de estresse pós-traumático,
lembranças terríveis e sofrimento emocional.
Se Manoel Carlos é contrário ao aborto em casos de estupro, deveria,
no mínimo, pensar no público que assiste às suas novelas. O desserviço
que ele está fazendo é gritante. A realidade em nada se parece com a
fantasia romantizada que pretende exibir, pois o desfecho feliz da
criança gerada por um estupro, que cresce fazendo aulas de violino em um
lar equilibrado, simplesmente não é fato social com estatísticas
palpáveis. Mas talvez o autor se lembre de outra personagem sua, vítima
de violência doméstica, interpretada por Helena Ranaldi: Raquel, da
antiga novela “Mulheres Apaixonadas”, apanhou durante meses até que
tomasse coragem de fazer a denúncia. Na mesma semana, as delegacias
registraram um aumento de 25% no número de mulheres que procuraram as
autoridades para denunciar seus agressores. Lamentavelmente, Neidinha
não servirá de exemplo para que vítimas de estupro se sintam empoderadas
e tenham coragem para denunciar, pelo contrário, até mesmo o direito
conquistado de interromper a gravidez é negligenciado. É uma grande
irrresponsabilidade social não informar às mulheres a respeito de seus
direitos de forma honesta.
O fato é que não podemos ignorar o poder que as novelas possuem sobre
a audiência; o povo assiste, comenta, copia gírias e roupas e se
inspira nessas tramas para enfrentar também os seus próprios desafios
diários. Além de fazer com que uma quantidade enorme de mulheres
assistam cenas inadequadas, extremamente violentas, ainda precisamosnos
atentar para a perpetuação da misoginia, pois o caso de Neidinha gera
também um teor agressivo de culpabilização da vítima. Pouquíssimas
mulheres conseguem reunir a coragem para denunciar o estupro sofrido e
solicitar o aborto – legal e gratuito – para não ter um filho
indesejado. É inaceitável que tantas mulheres continuem a reviver seus
traumas sem que sequer recebam algum auxílio. A naturalização da
violência sexual é um problema severo que a novela “Em Família” continua
a perpetuar.
http://revistaforum.com.br/questaodegenero/2014/02/12/estupro-coletivo-na-novela-em-familia-e-o-desempoderamento-das-
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