Todos os que já passaram por Thessker, a capital do Império de Gelo, já ouviram histórias sobre o ímpeto e rudez do seu governante. Por outro lado também já deve ter ouvido falar de sua generosidade e apreço pela honra e bravura. (destacando que ele não considera ser contrariado um ato de bravura e sim de desrespeito).
Eu estava sentado no Salão de Pinho, em uma das festas mais memoráveis que eu possa guardar comigo. O interior do salão era simples e todo de madeiras, como suas mesas e canecas, teto, parede e pilares, exceto pelo chão de uma única peça de pedra maciça. As tochas e candelabros acesos em reflexo à madeira deixavam todo o cômodo em tons de amarelo e laranja. E o Imperador estava reclinado em seu trono de pedra com uma caneca sempre cheia à mão, inatingível como um deus.
Jamais encontrei nada tão contrastante, durante os dias as pessoas eram cinzentas e frias, principalmente com os estrangeiros, eu acreditava ser reflexo das dificuldades daquela região, mas à noite, na festa do imperador, todos estavam felizes e eufóricos. Cantavam e dançavam, pareciam crianças com um ânimo caloroso e uma bebida capaz de esquentar os ossos mesmo que estivessem nus e envoltos em neve.
Foi então que os ânimos mudaram. Um homem magro, velho e barbado foi sendo arrastado para dentro do salão, em direção ao Imperador e logo que a comitiva foi avistada a música e toda a festa cessou em um silêncio asfixiante. O Imperador se pôs de pés antes que os soldados completassem o caminho e seu escudeiro lhe trouxe uma espada gigantesca ao alcance de sua mão.
– O que está acontecendo? – indagou Uthgard com sua voz trovejante, e todos os que estavam no salão tiveram vontade de fugir, menos o mendigo que agora era jogado ao chão.
– Ele foi encontrado nos seus aposentos, Meu Imperador. – respondeu um dos soldados com a voz trêmula. – Deitado na sua cama e comendo, de sua comida e bebendo de sua bebida.
Todos estremeceram ao ver o semblante de ódio do Imperador, ele se sentiu humilhado e todos sabiam que ele faria deste ladrão um exemplo.
– O que você diz em sua defesa, homem? – perguntou Uthgard enquanto desembainhava a espada.
Os guardas soltaram o homem e ele ergueu a cabeça e olhou o imperador olhos nos olhos. – Um homem que se sente cansado precisa de descanso e um homem faminto precisa de alimento. – respondeu.
– Mas isso não dá ao homem o direito de invadir meu castelo, – retrucou o Imperador – nem explica a necessidade de tomar da minha bebida.
– Um Nobre que não abriga um sábio viajante em sua casa, não é tão nobre assim. – falou o mendigo com um sorriso no rosto – E quanto a sua bebida peço desculpas… Todos têm seus próprios vícios.
– Um sábio então… – Uthgard sentou mais uma vez no seu trono com a espada apoiada à coxa e surpreendeu a todos naquele recinto – Então você deverá me mostrar um pouco de sua sabedoria respondendo corretamente o enigma que um dos sábios das Cachoeiras dos Dragões me ensinou, e então poderei lhe deixar viver:
“O que disse o homem de sua sombra:
Aquela maldita mancha negra que usa do corpo que tenho para fugir da luz que teme…
Iludida e debochada: Pensa ser igual a mim, mas além de mímica não é nada…
Traiçoeira e carente: Não sai dos pés que persegue a menos que para assombrar gente…
Inumana e vazia: Já que tua indesejada presença nunca será chamada companhia…
O que disse a sombra do homem:
Aquele ingrato pedaço de carne que reincide em chorar suas mágoas enquanto estamos a sós…
Iludido e debochado: Imita os poderosos e influentes e destrata os que estão ao seu lado…
Traiçoeiro e carente: Trais todos os que o amam e quando se vê só definha doente…
Desumano e vazio: Não reconhece a única companheira que terá do ventre ao chão frio…
Por que os homens temem a sua sombra? Por que as sombras querem ser homens?”
Por algum tempo todos ficaram em silêncio, o mendigo ficou parado, contemplando uma tocha tremulando ferozmente a deleite do vento enquanto o Imperador pacientemente esperava uma resposta do seu prisioneiro.
Quando todos já estavam tensos o suficiente para gritarem no meio daquele silêncio mortal o mendigo sem mudar o olhar de direção respondeu:
– Porque todos nós somos as sombras dos homens que queremos ser.
O silêncio retornou por alguns poucos minutos até que o Imperador se levantou com sua espada nas mãos e estendeu a mão para o mendigo se levantar dizendo.
– A sua resposta foi mais profunda e esclarecedora do que a que recebi da primeira vez. – e então enfiou a espada através do ventre daquele homem – Mas eu havia lhe pedido que me desse a mesma resposta.
O sábio ainda com um sorriso no rosto teve tempo de sussurrar mais algumas palavras no ouvido de Uthgard antes de cair morto no chão e ser atirado na neve para servir de comida aos cães: “Eu sempre soube qual era a resposta, já havia escutado esse enigma antes, mas mais importante do que continuar a viver era lhe ensinar a lição que você aprendeu esta noite”.
Uthgard sacou a espada de dentro do homem morto e quando os guardas vieram para lhe carregar ele disse para que todos ouvissem:
– Este homem não era menos digno de minha cama, comida ou bebida que eu. Em três dias faremos o enterro dele como o de um Rei e depois celebraremos com a com uma festa tão grande que o Sul jamais verá novamente. – ele fez um gesto para que os músicos continuassem, estendeu a espada para seu escudeiro e disse – cuide para que tudo esteja pronto.
E então a festa prosseguiu como se nada houvesse acontecido, todos voltaram a cantar, dançar e se embebedar. Na manhã seguinte tive de partir de Thessker, então a história do enterro do Sábio Mendigo eu nunca poderei lhes contar, o que ouvi dizer é que foi que o corpo do sábio foi cremado numa fogueira tão grande que durante toda uma noite toda a cidade se iluminou com o amarelo e laranja do Salão de Pinho e que até os animais de rua comemoraram a festa naquela noite.

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